tons de azul e pêssegos: crítica de 'céu de pêssego', da quasar cia. de dança.
- Xérem Indisciplinar

- 3 de nov.
- 4 min de leitura
crítica | dança

Fotografia: Jorge Sato
Com temporada de duas semanas no Farol Santander de Porto Alegre, Céu de pêssego é a primeira obra da Quasar produzida fora de Goiânia, cidade de origem da companhia. O espetáculo oferece ao público uma dança contemplativa, suspensa e monocromática, que flerta com características do minimalismo.
Dançada por Carolina Amares, Daniela Moares, Fabiana Nunes, Jorge Garcia, Lavínia Bizzotto, Luciane Fontanella, Luiz Oliveira e Samuel Kavalerski, alguns ex-bailarinos familiarizados com a linguagem da companhia, a mais recente obra da Quasar Companhia de Dança, um grupo longevo de dança contemporânea de reconhecimento nacional e internacional, entrega ao espectador uma coreografia de tempo esgarçado. O trabalho coreográfico se amalgama à pesquisa e ao estilo da companhia, que se empondera desde a sua criação em 1988.
Com 50 minutos de duração, a obra compõe no palco uma pintura monocromática elaborada com diferentes e belíssimos tons de azul, diluída apenas por um amarelo intenso da iluminação, que brevemente tinge o palco de pêssego. O figurino, assinado por Cássio Brasil, também explora variadas texturas, matizes, saturações e intensidades da cor, que, no contexto dramatúrgico da peça, traduzem calmaria, contemplação, introspecção, delicadeza e intimidade.
Um dos aspectos mais interessantes e dançantes da obra é a iluminação. Mesmo atuando dentro de um restrito universo cromático, que respeita as cores do fenômeno natural abordado, ela comunica-se com o espectador, ora banhando inteiramente o palco, ora promovendo recortes que “quebram” e desenham os corpos e os movimentos. Essa força poética da quebra também é explorada pelo diretor artístico e coreógrafo Henrique Rodovalho quando põe em cena transições abruptas de qualidades de movimento.
Para além de suas evidentes qualidades formais, Céu de pêssego esbarra em seu próprio contexto. A tentativa de traduzir e representar um fenômeno natural sem considerar sua agência e materialidade, soa arcaica e envelhecida. Trata-se, acredito, de um equívoco ético e político: em um momento em que se discute a agência dos elementos que constituem a natureza, tratá-la com excessivos tons românticos reduz qualquer potencial crítico. O fenômeno natural – e a escolha do nome da obra é reveladora – funciona aqui apenas como símbolo de referência para o humano, uma impressão poética do céu que não promove voz própria. Em outros termos a experiência do ambiente é apenas estetizada de forma objetificante.
O céu da Quasar se esforça para parecer despolitizado em um momento em que a natureza ganha status político. No antropoceno, era geológica marcada pela ação humana sobre o planeta, que resulta em devastação da biodiversidade e dos ecossistemas, a dança da companhia representa de forma idílica a natureza (categoria que, dentro de uma divisão hierarquizada, posta-se inferior ao “humano”, fato que justificou historicamente uma série de atrocidades e devastações). Homenageá-la com representações românticas, enfatizando o aspecto humano e reduzindo um aspecto tão complexo a uma espécie de decoração, desvia a atenção da urgência ambiental. No contexto atual, em que decisões artísticas podem dialogar e influenciar políticas ambientais, a neutralidade aparente da obra reforça os entendimentos coloniais sobre o próprio tema.
Há também outro fator preocupante. Por tratar-se de uma coreografia assombrada pelos códigos protocolares da dança moderna e “contemporânea” — sendo o binarismo masculino/feminino talvez um dos elementos mais inquietantes —, quando se trata de natureza, a mesma natureza historicamente invocada para legitimar o que seria “natural” e, por consequência, excluir o que escapa dessa norma, o binarismo m/f acaba por reforçar, a partir de certas decisões coreográficas, ideias e normas sociais. O espetáculo, assim, reproduz indiretamente padrões dominantes ao insistir, sem trato crítico, em um dos mais tradicionais dispositivos coreográficos: o pas de deux, levado à cabo por casais m/f, associado a um tema que, historicamente, também serviu para justificar práticas homofóbicas (afinal, danças m/f seriam as normais, “naturais”), afirma heteronormatividade disfarçada de neutralidade.
Céu de pêssego é, nesse sentido, apenas um instrumento de expressão que, ao mirar no sublime e no esteticamente agradável, se revela desengajado e debocha, ainda que involuntariamente, do potencial da performance como ato político, ético ou ecológico. O enfoque formal e técnico da coreografia suprime as corporeidades que a própria companhia afirma evidenciar, abafando a espontaneidade, a expressão e a reação dos bailarinos, o que resulta em belas formas, mas desprovidas de intensidade. Por outro lado, o elemento musical criado por Fred Ferreira e Lívia Nestrovski, potente e instigante, acaba tragado por uma coreografia que, em vez de dialogar com o som, parece persegui-lo. Não o ilustra, mas o replica, respondendo-lhe de modo incessante e excessivamente polido.
Há um certo consenso entre os teóricos das artes cênicas de que tudo é político na cena. Entretanto, acredito que já é hora de reconhecer que esse “tudo” tem se tornado tão recorrente e genérico que acaba perdendo potência crítica, servindo, em muitos casos, à manutenção do próprio status quo. Recusar compreender Céu de pêssego como político é um gesto de lucidez: é admitir que a ilustração do natural não apenas está distante de tensionar as configurações de poder, como o formalismo da “arte pela arte” pode, em sua aparência inofensiva, alinhar-se silenciosamente a ele.
Inserida em uma tradição de danças que recorrem ao ambiente e às paisagens como representação de estados de alma, mas também situada em um mundo já sufocado pela ação humana, Céu de pêssego pode ser lida como uma dança pacificada, que, ao tratar o tema da natureza de modo indireto e estetizado, acaba servindo às dinâmicas do capital ao desativar, em vez de promover, uma sensibilidade ecológica.
Texto publicado em 3 de novembro de 2025
Escrito por Ronildo Nóbrega.




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