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quatro vezes quatro: crítica de 'quatrocantos', do coletivo a4.

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • 22 de jul.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 26 de ago.


 crítica | teatro


Fotografia: Lino Fly Cariri
Fotografia: Lino Fly Cariri

Na última sexta-feira, a Usina Energisa recebeu, na Sala Vladimir Carvalho, o espetáculo Quatrocantos (2023), obra de estreia do Coletivo A4, da cidade de Campina Grande, Paraíba. Resultado de uma pesquisa que cruza histórias coletadas em cartas de diversas cidades do estado com as narrativas e questões dos integrantes do grupo, a obra — de tom confessional e ar melancólico — nos coloca diante dos desejos, das falas e das fissuras de uma multiplicidade conectada por uma rede que une e, ao mesmo tempo, estranha diferentes existências.

Sentados ao redor de um grande quadro — o “cenário” do espetáculo é dividido em quatro pallets de madeira adaptados com rodas, cada um simbolizando uma ilha, unificados por uma rede repleta de papéis que representam as cartas e as histórias transformadas em cena —, os espectadores são levados a re-conhecer os atuantes que, imbricados na função do dizer-se, desenrolam imagens de si e do outro, tendo como um dos pontos de partida a performance de cartas coletadas ao longo do processo de criação. André Sátiro, Duílio Cunha — que também assina a direção do espetáculo —, Luyza Probst e Regina Albuquerque são os atores-confessantes que, em cena, sussurram histórias como quem enuncia lugares e paisagens afetivas do mundo.

O retângulo, entendido como algo que repete lados e espelha medidas, se multiplica física e simbolicamente, anunciando uma ordem e estabilidade mais adiante tensionadas ou quebradas; a música que abre o espetáculo, os pallets (as ilhas/as individualidades), a rede suspensa no teto e “as cartas” que a preenche, os espelhamentos elaborados pela encenação entre as diferentes gerações e até mesmo o nome do coletivo, influenciado pela peça em questão, fazem menção àquilo que contém, que separa. O canto que dá título a obra se mostra como algo que abriga e protege, um lugar capaz de dizer e afirmar quem se é. Porém, se cada um dos quatro cantos é um espaço de refúgio de identidades, ele é também o espaço que permite a transformação em um movimento dramatúrgico que parte do que se entende como mais íntimo para alcançar algo mais coletivo, de interação, escuta e diálogo com a carta/palavra do outro.

O retângulo é o lugar de enunciação inicial; é por meio dele que conhecemos a bailarina que cresceu entre telas — e teve sua existência moldada por elas —, o garoto que anseia por contar grandes histórias — também uma forma de enquadramento —, o diretor que se depara consigo mesmo e tenta dar (outro) sentido à própria existência e ao ofício — através de um sonho em uma sala de ensaio de natureza retangular, repleta de cartazes de espetáculos — e, por fim, uma espécie de figura mitológica que, presa em um espaço quadrilátero, anseia por liberdade, pela fuga de uma ilha. Espelhando-se, essas narrativas se abrigam e se aprisionam, se protegem e se distanciam, oferecendo-se, ao mesmo tempo, como borda e solidão.

Por outro lado, se há a consciência de um limite — os atuantes carregam os nomes de suas funções estampadas nas camisetas —, de uma série de linhas que definem campos de agência, essas mesmas linhas aparecem saturadas, como que esticadas, no auge de sua tensão; são como cordas prestes a se romper e que, de tão desfiadas, já permitem transbordamentos diversos. É no exato ponto em que as histórias do coletivo começam a se cruzar com outras histórias que as ilhas passam a se conectar em movimentos de confluência. É exatamente aqui, quando o espetáculo assume um outro ritmo, que os quatro cantos começam a se multiplicar: quatro vezes quatro vezes quatro... Nesse processo, aquela apresentação inicial dos performantes — que parecia oferecer ao espectador um território firme e seguro — se amplia por meio de uma série de desabafos que se entrecruzam a cada corte, a cada dobra, a cada falha e a cada silêncio.

É então que cada um começa a surgir em cena como ser desterritorializante, empurrando-se para um fora-do-lugar-comum — como que caminhando para longe daqueles territórios conhecidos da atuação, da direção e, até mesmo, da construção dramatúrgica. Os atores e as atrizes falam por si e por muitos, como se seus corpos fossem canalizados por múltiplas vozes; o diretor, também ele ator, se desloca para a cena e tensiona os princípios clássicos da direção teatral; a dramaturga Ana Marinho, por sua vez, institui sua presença ao longo do espetáculo enquanto derrama confissões em forma de som, comentando o processo, narrando a si mesma e ao outro, e abrindo novas possibilidades de elaboração de sentido para a cena.

Neste espetáculo que tem circulado por algumas cidades do estado, a encenação de Duílio Cunha se distancia das grandes narrativas e do teatro que o tornou conhecido na cena paraibana. Longe dos textos fechados e do enredo clássico, Cunha se reaproxima de uma poética que começou a experimentar com Como se fosse impossível ficar aqui (2011), ganhou força em Quatrocantos (2023) e se intensifica no mais recente Réquiem para Geralda (2024). Em cada uma dessas criações é o cotidiano íntimo e as questões internas que dão materialidade às dramaturgias — geralmente fragmentadas e descoladas de uma ideia tradicional de teatro, o chamado “modelo aristotélico”. Nessas obras, a poesia se constrói quase como um cruzamento de desabafos, uma coleção de cenas que dão corpo a nós na garganta, a apertos no peito que pedem passagem e elaboração. Na primeira obra do Coletivo A4, a rede aberta, rasgada, é talvez o maior signo dessa poética que se dá como buraco que dá passagem, que destrava e dispara sentidos.

O primeiro espetáculo do coletivo campinense é um mosaico, um arquipélago de desejos, falas e fissuras — resultado do que é dito, do que é imaginado, mas também do que é silenciado: os olhares, os conflitos, as dores e os amores que as palavras revelam ou escondem. Estreada em 2023 na cidade de Campina Grande e criada com apoio de edital estadual de financiamento, a obra põe em cena um teatro menor, sendo a menoridade entendida aqui não como algo menos importante, mas como aquilo que se distancia do cânone, que quebra regras e inventa novas formas de fazer cena. É em Kafka: Por uma literatura menor que os filósofos Deleuze e Félix Guattari elaboram a noção de literatura menor como algo que desvia do padrão e explora os critérios de medida do que é conhecido, produzindo torções, desvios e deslocamentos na língua dominante.

Sem grandes histórias, Quatrocantos (2023) aposta nos dramas individuais sem desligá-los de algo maior e, ao fazê-lo, elabora paisagens íntimas com as palavras (e abismos) com as quais dialoga, revelando histórias marginais que ganham corpo em uma encenação construída a partir de cortes, propondo ao espectador navegar de ilha em ilha como um marinheiro a cruzar intimidades.


Texto publicado em 22 de junho de 2025

Escrito por Ronildo Nóbrega

 
 
 

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