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poesia gorda. crítica de 'gordança: uma palestra dançada', de renata teixeira.

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • 11 de out.
  • 4 min de leitura

Atualizado: há 6 dias

 crítica | dança


Fotografia: Débora Koller

Apresentada na última quinta-feira na Sala Alziro Azevedo, do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Gordança: uma palestra dançada combina relatos pessoais com reflexões críticas sobre como a gordofobia e os padrões de beleza a ela associados afetam as mulheres. Fruto da pesquisa de doutorado em artes cênicas de Renata Teixeira, que aborda a autoaceitação e a celebração da mulher gorda, a obra cruza autobiografia, teatro, dança e palestra em uma performance artesanal, divertida e instigante.

Com direção de Guadalupe Casal e dramaturgia de Renata Teixeira e Patricia Fagundes, também orientadora da tese, Gordança é uma obra de forte caráter afetivo, didático-informativo e questionador, que desnuda a gordofobia (assim como os padrões de beleza) como um dispositivo de controle social e subjetivo. Disposta em um cenário simples, composto por uma cadeira, uma pequena mesa, mandalas penduradas no teto e projeções de vídeos que acompanham, ilustram e comentam suas ações, a atriz-dançarina Renata Teixeira interage com a plateia, intercalando relatos pessoais com episódios de exaltação da corporeidade gorda.

A dramaturgia da obra-palestra tira sua força das vivências revisitadas em cena e da intimidade que constrói de forma espontânea com a plateia, mas também da maneira como Teixeira aparece questionando a tradição do ballet e inventando outra possibilidade de dança. Ela revela, talvez com a mesma intensidade, duas verdades sobre essa forma de expressão: como o ballet clássico é uma tecnologia coreográfica que historicamente esteve à serviço de um ideal universal de feminilidade (magreza, leveza e afins) e, por outro lado, como a dança (incorporante ou não do ballet) pode ser utilizada de forma inventiva para afirmar corporeidades dissidentes, isto é, como pode se constituir enquanto ferramenta-de-se-orgulhar, instrumento de composição de movimentos de celebração e de autoaceitação.

Os momentos mais interessantes da performance são aqueles em que se expõe a intimidade de Teixeira, as narrativas em torno do encontro inocente da criança com a dança e o que disso decorre, como, por exemplo, a forma como o tio a chamava (“bailarina da coxa grossa”), as intermináveis tentativas de emagrecer para se adaptar, a violência médica da prescrição genérica do emagrecimento, sem falar nos causos familiares da avó e da mãe. Tudo isso é intercalado com outros episódios de gordofobia de repercussão nacional.

Gordança: uma palestra dançada, contudo, parece passar ileso por algumas ideias que evoca de forma potente. Primeiro, há uma associação entre a opressão do corpo gordo e a animalidade que não é questionada (como se ambos não fossem assimilados por um mesmo sistema de opressão, dominação e silenciamento). Em uma cena bastante curiosa, a atriz-bailarina menciona que o corpo gordo é chamado, entre outros apelidos, de “elefante”, e o que o discurso constrói para o espectador é uma espécie de zona indefinida entre a tristeza e a indignação. Embora vegetariana e sensível aos animais, a oportunidade de refletir plenamente sobre as formas como o sistema cultural e social associa corpos gordos a corpos animalizados não é tão aproveitada.

Quando Renata Teixeira relata a relação que a sociedade estabelece entre o seu corpo gordo e o de certos animais, a exemplo do elefante e da própria galinha, bicho que a encenação incorpora como metáfora crítica de sua gordança, a atriz-bailarina intui que o seu próprio corpo, gordo, posicionado fora da ideia e do ideal universal de humanidade, assim como o corpo animalizado, faz parte do mesmo sistema de dominação. O mesmo se evidencia com a aparição da música A galinha magricela, que aparentemente inocente e lúdica, naturaliza a magreza, mas também a associação mulher-animal (o corpo gordo feminino é, então, animalizado, o que justificaria violências diversas).

O espetáculo deixa claro que o corpo gordo escapa à tradição ocidental que considera como ideal o corpo branco, magro, racional e controlado, mas não mergulha fundo na ideia que ele mesmo propõe, incorporando apenas de forma inconsciente a noção de que ambos, o corpo gordo e o corpo animal, são capturados por discursos e tecnologias que os reduzem à carne, ao instinto, ao excesso e à natureza. Carol J. Adams mostrou, em A política sexual da carne, como a política dominante assimila e trata os animais e as mulheres de maneira semelhante, objetificando-os. Em outras palavras, sexismo, especismo e consumo alimentar, ao qual a gordofobia se associa, não são fenômenos isolados, mas fazem parte de uma mesma estrutura de poder e dominação. Em segundo lugar, o espetáculo apenas pincela, em uma ou duas falas, a questão da insegurança alimentar, deixando de lado a outra moeda da gordofobia: a questão racial e a naturalização da desigualdade no acesso à alimentação. O mesmo dispositivo biopolítico que pune o corpo gordo também transforma a fome e a má nutrição em falhas morais, ocultando a economia política da comida que estrutura e atravessa o país e o mundo.

Isso não diminui, contudo, a beleza e a potência da poética gorda em acender discussões necessárias. Gordança: uma palestra dançada apresenta um posicionamento político e social direto, que ganha força na presença e na interpretação sensível e lúdica da atriz-bailarina Renata Teixeira, que transforma as violências dirigidas ao seu corpo gordo em motivos para fazer as pazes consigo mesma e para denunciar de forma potente todo um sistema de opressão às mulheres.


Texto publicado em 11 de outubro de 2025

Escrito por Ronildo Nóbrega.

 
 
 

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