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malabarismo convivial; crítica de 'espaço arcabouço', de gabriel martins.

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • 20 de set.
  • 4 min de leitura

 crítica | circo


Fotografia: Luis Paulot
Fotografia: Luis Paulot

Espaço arcabouço, solo de Gabriel Martins estreado em 2017, reapareceu na última quinta-feira no circuito cultural de Porto Alegre como um dos poucos artefatos circenses da programação do Porto Alegre em Cena, festival anual realizado pela prefeitura da capital gaúcha em parceria com o Ministério da Cultura. Explorando uma dramaturgia que se concentra na relação do malabarista com diferentes tipos de malabares e técnicas, a obra investiga a autonomia, a linguagem e a potência de criação de sentidos inerentes à arte do malabarismo.

Disposto em um espaço rodeado por luzes tubulares, por uma mesa de controle de iluminação e som e por uma plataforma de malabarismo em constante transformação, o espetáculo coloca em cena um circense que abraça o desafio e o erro como partes constitutivas da obra. Em Espaço arcabouço, Gabriel Martins estabelece, ao longo de 40 minutos, uma relação quase erótica com seus instrumentos de trabalho. Ele encara e manuseia os malabares como quem confronta uma matéria viva – e, de fato, ela o é, se considerarmos a vida para além do orgânico. Nesse embate íntimo, é como se a matéria lhe devolvesse sinais sutis, que exigem escuta e entrega. É aqui, nesse diálogo, que o malabarista parece se ligar ao mundo das coisas, ouvindo os materiais com uma atenção que reconhece a dignidade e a autonomia dos instrumentos, capazes de desenhar o espaço, transformar e influenciar tudo o que se coloca ao redor.

Dessa forma, o solo é uma exploração intensa, sensorial, afetiva e carnal da materialidade a partir de diferentes técnicas de malabarismo – arremesso, contato e rebote. É também, mais do que isso, uma expansão da linguagem dos malabares em direção a um tipo de malabarismo convivial, em que o propósito não é tanto exercer a captura e o domínio sobre a matéria, mas elaborar processos e procedimentos de convivência com ela. Assim, todo o espetáculo nasce de uma relação diretamente implicada com a materialidade. Os artefatos circenses – e o artista opta por três tipos diferentes de bolas – desenham o espaço, produzem sons e interferem no movimento do artista, que, mais do que tentar sobrepor-se, parece reconhecer e se abrir ao poder dos instrumentos.

Nesta obra, a ideia de manipulação e risco, tão caras ao circo, é tensionada por uma atitude que enxerga potência no compartilhamento e na capacidade de afecção da matéria sobre o humano. Nos instantes iniciais da apresentação, quando o artista desloca as bolas pelo espaço e se move a partir do desenho que elas traçam no chão, o sinal é claro: as coisas também têm agência e força próprias, determinando o movimento e a relação do humano no espaço. O resultado, a longo prazo, é visível no suor que marca o corpo do artista, sendo o testemunho da intensidade da relação estabelecida com a matéria.

O arcabouço que se revela no título da obra é o espaço físico e simbólico de experimentação que permanece quando o sentido implicado na manipulação é tensionado como elemento constituinte e decisório do malabarismo. O termo manipular, tão caro a essa prática, procede do latim manipulare, derivado de manipulus, que originalmente designava a ação de segurar e relacionar-se com algo usando as mãos. Seu sentido moderno, no entanto, aproximou-o de outro campo: o do trabalho e das relações sociais, ganhando a conotação de controle.

O malabarismo tal como o conhecemos — isto é, como exercício técnico e estético de lançamento, equilíbrio ou controle de objetos — nasce justamente de uma experiência moderna que incorpora um dado sentido sentido de manipulação. Não por acaso, sua consolidação é contemporânea ao surgimento do circo de Philip Astley — criador da tradição circense tal como fixada no imaginário social, estruturada pela lógica da virtuose —, bem como ao avanço do capitalismo, do colonialismo, da ciência, da cisão homem/natureza e de outros regimes modernos de pensamento. Este malabarismo, nutrido pela ilusão de controlar o mundo para impressionar e entreter, e que se distingue de outras formas históricas e culturais, hoje se depara com uma realidade que parece reencontrar algo presente em outros momentos da história dessa arte/técnica: a ligação simbiótica entre homem e matéria.

Percebe-se que o malabarismo contemporâneo parece menos interessado na posse do homem sobre a matéria e mais em dialogar com ela, reconhecendo que os malabares não são passivos, mas agentes que afirmam sua própria existência. O primeiro trabalho solo de Gabriel Martins parece se alimentar da tradição — não à toa ele opta pelo símbolo universal do malabarismo, as bolas — sem deixar de experimentá-la; isto é, sem deixar de entender que as coisas agem, se transformam e interferem no humano. Em outras palavras, mais do que impressionar o público, a arte dos malabares aparece aqui como um exercício de exploração do convívio. Trata-se de uma obra que passeia entre a precisão e o erro, o clássico e o contemporâneo, o som e o silêncio, o domínio e a liberdade, explorando uma outra imagem do malabarismo, uma menos preocupada com o domínio do mundo.

Inserido em um contexto em que as disciplinas circenses começam a ser exploradas em sua autonomia poética, e em que o circo passa a se distanciar de sua imagem tradicional, o trabalho solo de Gabriel Martins torna-se o espaço em que o artista pode explorar sua técnica de maneira criativa e potente. Sem dividir o espaço e os sentidos do espetáculo com outras disciplinas circenses o malabarismo dispõe de uma dramaturgia prórpia, capaz de depor sobre as formas como a humanidade lidou — e é capaz de lidar — com o mundo que a cerca.

 

Texto publicado em 20 de setembro de 2025

Escrito por Ronildo Nóbrega.

 
 
 

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