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hip-hop antropofágico: crítica de 'vapor, ocupação infiltrável', do original bomber crew.

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • 26 de ago.
  • 3 min de leitura

Atualizado: há 7 dias


 crítica | dança


Fotografia: Maurício Pokemon
Fotografia: Maurício Pokemon

Primeira apresentação no Nordeste fora de Teresina, cidade de origem e referência da Original Bomber Crew, a obra Vapor, ocupação infiltrável (2024) invadiu o palco do teatro do Centro de Cultura, Arte e Esporte do Sesc, em João Pessoa. Com uma performance masculinista, na qual a violência funcional e precisa — quase cirúrgica — dos gestos atua como meio e ferramenta, e não como fim, a obra celebra a força e a resistência do corpo periférico em uma poética indisciplinar e cortante.

Fruto do encontro entre artistas de trajetórias e bagagens singulares, a criação organiza sensações através de um complexo cruzamento de movimentos, sons e imagens que incidem no espectador como a força cortante de uma masculinidade consciente de sua potência. Performada por Allexandre Bomber, também responsável pela concepção e direção da obra, César Costa, Javé Montuchô, Malcom Jefferson, Maurício Pokemón e Phillip Marinho, Vapor, ocupação infiltrável (2024) transborda impacto emocional, tensionando o espaço e os sentidos do público.

Desdobrada a partir de performances gravadas, a mais recente criação do grupo piauiense — contemplada na atual edição do Palco Giratório, a maior iniciativa de difusão e intercâmbio das artes cênicas do país — acontece inserida em uma ambiência ativa, composta de papelões e outros materiais cotidianos que enquadram corpos masculinos que performam força e tensão, coragem e liberdade. O “cenário”, como que uma realidade inconforme, transforma-se ao longo da ocupação gambiarística que reflete a potência e a inventividade da cena contemporânea brasileira periférica, desapoiada, precária e resistente.

Integrando a trilogia iniciada com tReta (2018) e seguida de Suspeita (2020), a mais recente obra do grupo teresinense expande as figurações de país e a identidade do coletivo na sua antropofagização do hip-hop — movimento contracultural surgido nas periferias dos Estados Unidos na década de 1970 e posteriormente referência para minorias étnicas e moradores de bairros periféricos das grandes cidades brasileiras. A partir de uma mastigação e temperagem desses códigos consolidados com elementos típicos da cultura negra-periférica brasileira, a poética do grupo incorpora ao hip-hop o diálogo e o choque com outras manifestações populares, como capoeira, bumba-meu-boi e brincadeiras tradicionais, como a pipa.

Os elementos dessa contracultura estão todos presentes, em maior ou menor grau, no espetáculo: a urbe — embora seja preciso notar que a apresentação em palco convencional, do qual não escapa o seu desejo de neutralização da relação espacial, surrupie um pouco de potência —, a ocupação e o jogo com o espaço, a mesa de controle de som e o aparelho eletrônico-difusor, os desenhos e escritos que emulam grafites e pichações, e os elementos clássicos do break, como giros e powermoves. Cada um desses componentes, contudo, coabita e se transforma ao entrar em contato com outra natureza periférica: a dos capoeiristas, dos dançarinos de bumba-meu-boi, dos cantos dos pescadores e manifestações afins.

O conceito de “vapor” dá nome à obra e ao seu universo simbólico: referência a indivíduos, geralmente crianças e adolescentes, cooptados pelo tráfico, que “evaporam” ao primeiro sinal de polícia. No espetáculo, o vapor é metáfora de desaparecimento, mas também dos rastros e da presença simbólica daquilo que existe enquanto fantasma, exatamente porque outrora se fez presente.

Tudo isso se articula numa estranha relação com a violência, entendida aqui como força veemente, ímpeto e intensidade excessiva. Violento é, na obra, não a agressão física ou a representação simbólica da agressividade, mas a força concentrada e desmedida — algo associado historicamente de outras maneiras ao corpo masculino e que se canaliza poeticamente na obra de outra forma. Logo, essa violência que não é, necessariamente, representação do conflito, é força concentrada que estrutura os movimentos e orienta a performance, comunicando ao público, em uma espécie de ritual urbano brutal, toda uma série de elementos que envolvem tensão, conflito, resistência e ruptura.

Os gestos, ao mesmo tempo fluidos e calculados, abertos e precisos, mostram como a masculinidade, quando consciente de sua força, pode ser ferramenta poética e performativa, capaz de tocar o espectador com potência e impacto numa espécie de crueldade artaudiana masculina e periférica. Antonin Artaud, famoso teórico do teatro francês, apresentou, em seu Teatro da Crueldade e tendo em mente as inovações do teatro balinês, a ideia de corpo como um hieróglifo em movimento, apontando uma cena que, mais do que se submeter ao texto e às formas racionais de organização, produz efeitos.

Em Vapor, ocupação infiltrável (2024), o coletivo Original Bomber Crew empurra o público a participar de um ritual em que o corpo é essa espécie de hieróglifo que, ao produzir-se no tempo-espaço, dispara desestabilisensações – sensações de bagunça interna, como quando o coração ou a barriga fica sem equilíbrio –, algo místico, que fala à percepção do espectador.

 

Texto publicado em 26 de agosto de 2025.

Escrito por Ronildo Nóbrega.

 
 
 

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