dádiva: crítica de 'graça', da giradança.
- Xérem Indisciplinar

- 10 de abr. de 2023
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de ago.
crítica | dança

Depois de circular por São Paulo, Ceará, Pernambuco e Paraná, Graça: uma economia da encarnação estreou em Natal, cidade sede da Companhia Giradança. Desenvolvida com auxílio do programa Rumos Itaú Cultural, a criação finalmente encontrou a oportunidade de acontecer nos palcos da cidade de origem do grupo. Juntamente com a pré-estreia de Sal, ocorrida no primeiro mês do ano na sede do grupo no bairro histórico da Ribeira, Graça dá continuidade à quebra de um hiato de quatro anos sem se mostrar nos solos natalenses.
Com concepção e coreografia de Elisabete Finger, a obra dispõe em cena três mulheres, três figuras mitológicas bicolores, acompanhadas por um não-sei-lá-o-quê, uma matéria esférica que elas possuem ao mesmo tempo em que são possuídas por ela. Essa matéria inorgânica segue as dançarinas do início ao fim do espetáculo e, como se fizessem parte de seus corpos, reivindicam também um lugar ativo na produção coreográfica de tonalidade ritualística. Transitando do contido, da lentidão e do silêncio para a desmesura, o êxtase e o som, a dramaturgia e a estrutura dos sentidos em Graça tiram a sua potência das corporeidades femininas, ao mesmo tempo serenas e altivas, que coabitam e agem na cena ao lado dessa matéria plástica, hora aparentando-se dura, hora mole e macia.
Mergulhadas na brancura estonteante da cenografia, as três fêmeas agem. Seus corpos são devidamente recortados por uma pintura que, entre o lilás e o vermelho, evidenciam os seios e o ventre como que numa referência à menstruação, a fertilidade e a maternidade. Essas mulheres que se olham, se tocam, giram em círculos, penetram e bebem o leite das que escorre das esferas que carregam constroem um pensamento sobre a mulher que é, num certo sentido, ancorado na biologia e na ideia de sexo biológico. Por outro lado, é preciso afirmar, a lógica desse discurso não dá margem para pensar a exclusão de outras mulheres (me refiro aquelas as quais as identidades se constroem para além do sexo biológico).
Se de início as três figuras de Graça se assemelham e “soam” despersonalizadas (não sabemos os seus nomes, de onde são e afins), o decorrer do espetáculo irá mostrar a potência narrativa da materialidade corpórea de cada uma das performadoras, a saber, as Ana Vieira, Jânia Santos e Joselma Soares. É a configuração dos seus corpos (altura, peso, cor da pele e afins) e o modo como eles se expõem e se movimentam que irá desembocar na potência do espetáculo. Em seu livro The transformative power of performance, a estudiosa alemã Erika Fischer-Lichte aborda a questão da transformação e da materialidade do espetáculo e, ao fazê-lo, desenvolve o conceito de virada performativa para apontar a emergência de um modus operandi no campo das artes.
Segundo a autora, a partir de 1960 torna-se evidente o aparecimento de uma lógica de criação artística que tira proveito da cena enquanto evento que acontece no encontro entre aquele que atua e aquele que observa. Nesse paradigma identificado por Fishcer-Lichte, o evento redefine a relação sujeito-objeto no espetáculo. Não há, aqui, uma separação clara entre quem realiza a cena e quem a observa. O público, segundo ela, não se coloca diante de um objeto estático que, ao serem apagadas as luzes, deve ser contemplado, interpretado e lido.
Para construir a sua argumentação, Fischer-Lichte apresenta exemplos diversos de obras em que a relação não se dá em termos de alguém que apresenta para alguém que observa, mas, pessoas que coabitam e participam de uma cena que opera nos modos de um ritual. Nada de novo até aqui, afinal, o teatro grego antigo e muitas modalidades cênicas persistiram com enfoque nesse modo de feitura da cena. O ponto forte do pensamento em torno da virada performativa se encontra na contribuição que o conceito lança em relação a materialidade do espetáculo. Para a estudiosa alemã, a matéria é capaz de se comunicar de modo a tensionar e espremer (até o limite) qualquer tipo mediação consciente.
Nessa lógica de operação, a materialidade do evento domina o seu caráter de semioticidade. Em outras palavras, mais do que organizar signos para serem lidos e interpretados pelos espectadores, na lógica do evento é a materialidade dos corpos (humanos e não humanos) que comunicam a partir de processos de que lhe são próprios. Matérias agem e des-organizam o espaço, geram sensações e afins. O paradigma por evidenciado por Fischer-Lichte se dá em oposição a lógica que predominou durante muito tempo na Europa e que se espalhou pelas regiões colonizadas do globo em que a principal característica seria a contemplação de um objeto de arte (para afirmar isso ela lembra do apagamento das luzes do teatro, o sobrepeso da literatura na construção do espetáculo, a sofisticação das regras de comportamento nas casas de espetáculo como, por exemplo, a proibição de comidas, bebidas etc.).
Esse é um tanto o caso de Graça. É verdade que não estamos diante de um evento que requer a participação direta do observador, mas é verdade também que somos colocados no papel de testemunha de um acontecimento que se dá, sobretudo, a partir da materialidade dos corpos colocados em cena. Cada uma das ações gestam uma realidade singular tanto para quem realiza quanto para quem assiste, isto é, para todos os participantes da performance. Essa realidade não aparece para ser interpretada, mas experienciada e, nesse sentido, quando as mulheres pendem descontroladamente pelo espaço nós, observadores, pendemos junto com elas. Em outras palavras, o caráter semiótico tem uma importância menor diante da materialidade e das ações dos corpos.
Não digo com isso que as ações e os gestos realizados pelas bailarinas não significam ou possam significar algo. Muito pelo contrário. Quando as bolas que as mulheres carregam são “estouradas”, secam e de lá desliza um líquido branco direto para suas bocas, gesto que será seguido pela mudança na natureza dos movimentos podemos pensar, entre outros fatores, nos processos radicais de identificação da mulher em relação àquilo que lhe é próprio e que liberta o seu mover (antes contido) pelo espaço. O que quero dizer, porém, é que a materialidade precede as tentativas de interpretação.
Mais do que evocar signos para ser interpretados de maneira dura, as ações que as três figuras realizam provocam efeitos e sensações diversos no público. Nesse sentido, acredito que força de Graça está no seu poder de autorreferencialidade e naquilo que Humberto Maturana e Francisco Varela identificaram como autopoiésis. Na teoria dos biólogos chilenos, a autopoiésis se refere a um sistema que se auto organiza, que é ao mesmo tempo produtor e produto de sua realidade. Sob o olhar a autopoiésis, a coreografia bastaria a si mesma na medida em que não cessa de se produzir a partir de uma lógica que lhe é própria.
Há um outro fator preponderante no espetáculo da companhia Giradança; um flerte poderoso com a escultura. O movimento das três figuras, orquestrado na perspectiva do volume, aparece como que esculpido a partir da lógica inerente às rochas em uma temporalidade estranha a arte do espetáculo. Cada gesto coreográfico opera a partir de uma relação íntima com a lentidão característica dos sólidos que, ao contrário do que possa aparecer ao senso comum, também se movem e se transformam em ritmos diversos. Desse modo, mesmo quando se deslocam desordenadamente pelo espaço, as três mulheres de Graça carregam algo que é próprio da paragem e do ritmo na linguagem da escultura.
O elemento cenográfico é orquestrado para dar ênfase às figuras que, apesar de se movimentarem na lógica da pedra, transpõem em certos momentos uma leveza quase divina. Longe de ter um tom secundário, a brancura da cenografia e a constância da iluminação acendem as estátuas em estados de dança. O contraste que sobrefoca as três figuras tornam os movimentos mais curtos e imperceptíveis em células de poderosa importância para a dramaturgia do espetáculo. Por outro lado, esse mesmo hiperfoco transforma qualquer dissintonia, gesto fora do lugar ou som desencontrado em enormes deslizes e descuidos técnicos.
Nesse espetáculo em que o espectador é levado a contemplar essas três figuras e seus gestos como quem contempla uma escultura que se presta ao movimento e a dança, as mulheres da gira nos convidam a ritualizar os seus corpos e a encarnar a dádiva de ser e de existir (num continuo fazer e se refazer) como cada uma delas.
texto publicado em
10/04/2023
escrito por ronildo nóbrega,
professor, crítico de arte e artista multimídia




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