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dar voz a pedra. crítica de 'ytá', de edceu barbosa e barbara matias kariri.

  • Foto do escritor: Xérem Indisciplinar
    Xérem Indisciplinar
  • há 49 minutos
  • 4 min de leitura

 crítica | performance


Fotografia Luiz

Fotografia: Luiz Fernando


O Instituto Ling recebeu, na última sexta-feira, como parte da programação da MIAC – Mostra Internacional de Arte Contemporânea, a performance Ytá, de Barbara Matias Kariri e Edceu Barbosa. Fruto de uma interação de quatro anos com as pedreiras do interior do Ceará estreada em 2024, no Crato, a obra é uma composição multimídia de natureza relacional e de forte caráter imagético-sensorial, que põe em cena uma interação singela e política entre corpos e pedras.

Dispostos sobre uma passarela iluminada, Barbosa e Kariri interagem com duas pequenas pilhas de pedra calcária, em sua forma moldada pelo extrativismo e pela sede de industrialização mercadológica do humano em relação à natureza. Uma vez desenterrados, ou melhor, saídos debaixo das pedras que dão uma força concreta à cena no início da obra, os corpos põem-se a cartografar os territórios indígenas cearenses, re-produzindo afetos, gestos, imagens e histórias reais de mineradores da indústria do calcário, enquanto dão voz à terra e às pedras.

Tomando a perspectiva da pedra amputada, deslocada e mercantilizada pela indústria, a dramaturgia de Ytá reflete sobre como os corpos, humanos e não humanos, são usurpados de sua potência ao serem reduzidos à condição de recurso e mercadoria capitalistas. Trata-se, então, de uma demonstração de como essa força é extraída e inserida na lógica do consumo. Em outras palavras, Ytá discursa sobre como uma pedra, que é um arquivo vivo formado por fósseis milenares que ligam o presente ao passado profundo da terra, é transformada em produto de mercado, gerando ornamentos e cidades que apagam e silenciam a história do mineral e de seus trabalhadores.

Com dramaturgia de Barbara Matias Kariri, também criadora-performer de Ané das Pedras, obra integrante da circulação atual do Palco Giratório, Ytá é a materialização potente de uma poética da escuta da terra e do território kariri. Conhecido por sua riqueza natural e geológica — as pedras, os fósseis, o solo árido —, mas também pela força de suas tradições culturais, o Cariri cearense tem se transformado em um celeiro de artistas conscientes da potência do território como espaço vivido, lugar de memórias e modos de ser e existir.

Sendo assim, Kariri e Barbosa evidenciam a importância de pensar a pedra cariri, e o corpo humano, diga-se de passagem, não como produto, mas como elemento dotado de uma vitalidade capaz de criar, e não apenas reproduzir, o mundo.

Na MIAC o espetáculo assumiu uma forma completamente desteatralizada, em grande parte pela força performativa do espaço de apresentação, o salão do Instituto Ling. Diferente da neutralidade da caixa preta, o espaço operou como elemento ativo, instaurando uma anti-teatralidade que potencializou a experiência sensorial da obra, nascida também de sua relação potente com o vídeo, o som e o cheiro forte da argila molhada sobre os corpos dos performers e afins.

Essa característica é reforçada por uma decisão curatorial acertada de Fernando Zugno, que, à frente da MIAC, propõe uma integração entre diferentes linguagens artísticas. O ato curatorial e a escolha do espaço, portanto, não apenas moldam a experiência do público, mas também influenciam diretamente os sentidos da obra. Com a estrutura técnica de som e iluminação à vista, e com o belíssimo jardim que abraça o salão e é utilizado pelos atores ao final da apresentação, o espaço complexifica Ytá, adicionando camadas inéditas de sentido.

O público, por sua vez, mais do que assumir o lugar de espectador comum, mergulhado em uma imobilidade passiva, é integrado de forma ativa à performance. Ele passeia pela cena, recebe ordens dos performers para ligar as câmeras dos celulares e capturar a denúncia que nasce das minas, assim como é convidado a dispor as pedras que, ao fim da apresentação, compõem uma instalação calcária que proclama seus próprios sentidos.

Em Ytá, os corpos de Barbara Matias Kariri e Edceu Barbosa, vestidos como mineradores da região de Santana do Cariri, local onde realizaram a pesquisa para a criação da obra, falam por si e pelos habitantes de sua terra sem que precisem articular muitas palavras. Quando põem, literal e metaforicamente, as mãos na matéria geológica de sua região, eles ativam a memória de uma terra marcada por ausências e resistências.

Performando uma ética da atenção, da escuta e do respeito ao não humano, Ytá dá voz à pedra cariri ao denunciar a mudez imposta pela mineração, apontando, em contrapartida, para o direito da matéria de existir fora da lógica da mercadoria. Os caminhos desse pensamento são atravessados pela cosmovisão da etnia Kariri, que, apesar das inúmeras tentativas de apagamento, persiste nos modos de vida e de organização de grupos do Nordeste brasileiro.

O espetáculo é um exemplar de como a arte pode dar voz àquilo que foi taxado como passivo e desprovido de vitalidade e agência pela tradição ocidental. Ytá reafirma a potência dos territórios e das formas de vida frequentemente silenciadas, celebrando a vitalidade que habita tanto a pedra quanto os corpos que com ela se conectam.


Texto publicado em 18 de outubro de 2025

Escrito por Ronildo Nóbrega


 
 
 
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