Madame narra a história da dermatologista brasileira Camille Cabral e suas ações à frente da associação Prévention action santé travail pour les transgenres (PASTT).
ronildo nóbrega

O Bois de Boulogne é um parque habitado por muitos profissionais do sexo em Paris. Em suas alamedas e bosques, mulheres trans do mundo inteiro trocam algum tipo de serviço sexual por dinheiro. O comércio é realizado, geralmente, ali mesmo nas entranhas do próprio parque (apesar, diga-se de passagem, da pressão exercida por recentes políticas públicas desfavoráveis ao trabalho sexual na França). É nesse labirinto erótico de 8,2km de extensão, com alas divididas por nacionalidade e mesmo pelo tipo e pela qualidade do serviço que a PASTT, associação criada por Camille Cabral, realiza algumas de suas ações. Com o intuito de lidar com a condição de precariedade imposta aos corpos trans por um sistema sexual que, em sua lógica binária, promove e expõe os dissidentes deste sistema a uma série de constrangimentos econômicos e sociais, a PASTT e a história de Camille Cabral se enredam e se confundem ao longo da delicada construção de Madame.
Em um contexto em que a legislação em torno da prostituição passa por transformações e pressões conservadoras, a associação de Cabral, imigrante nascida no interior da Paraíba, dá auxilio às transprostitutas para que elas consigam sobreviver ao enredamento transfóbico que paralisa e tensiona suas existências na capital parisiense. Perante a dificuldade de acessar direitos básicos na área de saúde e moradia, a PASTT realiza ações que buscam lidar com a indiferença crônica que se perpetua em relação aos corpos dissidentes do sistema sexo/gênero.
Essa e outras imagens nos são apresentadas em Madame, documentário dirigido por André da Costa Pinto e Nathan Cirino e exibido na última edição do DIGO – Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás, realizado digitalmente por imposição da pandemia de coronavírus.
Numa narrativa que se apresenta como um painel biográfico e afetivo, construído aos modos de uma proximidade peculiar – a posição predominante da câmera aponta uma permeabilidade no mundo de Camille e no cotidiano da PASTT – Madame compõe um discurso sutil e delicado sobre a trajetória da ativista que, eleita a primeira vereadora transimigrante de Paris em 2001, incorporou o debate acerca da prostituição e dos direitos das pessoas trans que exerciam tal atividade no epicentro da política parisiense.
Na escrita cinematográfica de Costa Pinto e Nathan Cirino, desbravantes das questões de gênero no cinema paraibano, o mapa de sensações perpassa (de modo sutil) temas como a vulnerabilidade e a precariedade impostas ao corpo trans por um sistema que marca e subalterniza a diferença (o documentário mostra, logo de início, o trabalho da associação para dar dignidade mortuária a uma mulher trans que acabara de morrer na capital francesa). Contudo, longe de condensar a sua força nesse aspecto, o longa se revela potente nos modos pelos quais apresenta Camille e o peso de uma perspectiva epistemológica que impede a liberdade de experimentar o gênero e expressar-se sexualmente fora das normas e dos limites aceitos pela sociedade (nesse sentido, a menos que você se contente com (muito) pouco, a França continua sendo um país subdesenvolvido em termos de superação da religião sexual do ocidente).
Gravado em momentos de 2011 e 2018, entre as cidades de Barra de São Miguel e Paris, Madame desponta os momentos de uma figura que existe em relação de conformidade com os seus desejos (de tornar-se outro, cruzando as fronteiras do gênero, mas também de comercializar o corpo e de ser remunerada por isso) e que, percebendo a condição de precariedade imposta ao seu corpo e ao de seus/suas colegas, resolve desenvolver uma rede interconectada de solidariedade, elaborando rotas de combate ao preconceito e a discriminação.
Exibido no DIGO – Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás, festival do qual levou, entre outros prêmios, o de melhor direção, Madame é um documento que compõe o amplo panorama de desnaturalização da religião sexual do ocidente, apontando os modos como esta linguagem rotula, subalterniza e marginaliza os corpos e as práticas sexuais dissidentes (que se estendem para além do paradigma binário de compreensão do corpo).