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reflexões dirigidas

lemuel guerra

Foto: Tarciana Gomes

O fenômeno humano conhecido por ‘teatro’ foi definido por Platão, com base na sua observação da experiência grega, como ‘um lugar onde gente ignorante é convidada a ver homens que sofrem’. Nesse sentido, o teatro ofereceria aos espectadores o espetáculo de um pathos, de uma doença – a do desejo e do sofrimento, experienciada na forma patológica do olhar subjugado por sombras.


Segundo essa visão do teatro, ser espectador de teatro é um mal, por duas razões: a primeira, por ser o olhar o contrário de conhecer, na medida em que assistir a representações teatrais significaria permanecer no âmbito de uma aparência, ignorando o processo de produção da aparência ou da realidade que a aparência que se lhes oferece encobre; a segunda, porque olhar seria o contrário de agir. Assim ser espectador corresponderia a separar-se simultaneamente da capacidade de conhecer e do poder de agir.


Grosso modo a proposta de Brecht, construída em reação ao paradoxo do espectador acima brevemente enunciado, anuncia um teatro épico sem espectadores, pensados como sujeitos que, ao assistir, aprenderiam; em vez de serem seduzidos por imagens e sentimentos, tornar-se-iam participantes ativos e não voyeurs passivos. O teatro brechtiano implica na concepção de encenação como processo através do qual os indivíduos por ele atingidos são colocados no espaço não da identificação emocionada, mas no da distância reflexiva, baseada na problematização dialética e didática da ação e das intenções dos personagens colocados em relação nos jogos narrativos apresentados.


‘Helenas’ se define como encenação e performance teatrais que se propõem a ativar a transformação de seus espectadores em participantes ativos de uma prática coletiva de reflexão dirigida.


Como a crítica do modelo de teatro épico/didático brechtiano já tem apontado recorrentemente, essa proposta se esquece de instaurar em relação a si mesma a distância que propõe construir entre os que assistem e os que representam. Esse distanciamento em relação à posição de pedagogos portadores das lições sobre as realidades representadas potencializaria a percepção da nudez da figura do mestre em sua relação com o aluno, sempre baseada no substrato obsceno da crença na desigualdade das inteligências. Ao se construírem como mestres, mesmo quando se portam como se apontassem as contradições e esperassem do público os fechamentos ‘livres’ relativos às representações dos conflitos apresentados, os atores, dramaturgo e toda a equipe cuja ação se vê no palco, constroem a posição dos espectadores como a daqueles que ignoram e que se oferecem para receber as lições que o espetáculo traria.


Em ‘Helenas’,a seções didáticas vão se sucedendo e a pressuposição subjacente central ao que se oferece no palco é a da ignorância dos que assistem. Há na concepção brechtiana de teatro essa armadilha que institui os que produzem o teatro como portadores de uma consciência que os que o assistem não teriam, operando na chave de uma pretensão pedagógica que frequentemente ignora a floresta de signos e de símbolos em que somos todos mergulhados, o que instaura a constante possibilidade da ‘anti-lição’ ou das ‘deslições’. O caminho adotado da ativação do riso enquanto estratégia de distanciamento – como é possível ver na reação da plateia – não funcionaria na direção da supressão da distância que se pretende suprimir?


A proposta brechtiana – aqui discutida em seu aspecto geral, ao trabalhar com as oposições olhar/saber; aparência/realidade; identificação/alienação; atividade/passividade definem uma partilha do sensível, uma distribuição a priori de posições e de capacidade/incapacidades a elas associadas. Em ‘Helenas’, como em qualquer outro espetáculo que adote esse caminho de produção, os riscos e as armadilhas são muitos: os modos de provocar/construir a reflexão sobre relações de gênero, racismo, repressão sexual e opressão religiosa, tudo com o objetivo impossível de pensar o ‘ser do brasileiro’, algo que não existe, a não ser como camadas de invenções e de narrativas, podem também ser vistos como alegorias encarnadas das desigualdades e das injustiças que se pretende, eventualmente, combater.


Ao lado dessas reflexões mais gerais cabe destacar a qualidade do trabalho musical e especialmente vocal dos atores, que apresentam performances iluminadas, destacando-se também em suas habilidades interpretativas, principalmente a partir da metade do espetáculo, quando os jogos narrativos deixam de ser menos frontalizados e mais horizontalizados, enfrentando bem, na maior parte do espetáculo, os problemas das demandas de construção de personagens ao mesmo tempo flutuantes, rápidos e cenicamente verdadeiros. O painel que serve de fundo não tem funcionalidade, bem como os candeeiros/luminárias perdem seu poder cênico no conjunto do plano de iluminação.

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