O Casarão José Rufino ou a quem serve a ideia de patrimônio?
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Duas semanas após o episódio de insurreição fascista que depredaria a sede dos três poderes em Brasília, comprometendo obras de artistas importantes para a memória cultural do país, a exemplo de Di Cavalcanti e Portinati, assistimos pelas bandas de cá a notícia de embargo a uma reforma que se desenrolava há pelo menos uma semana no Casarão José Rufino, patrimônio material de areienses e paraibanos. O sobrado em questão, uma construção colonial de 1818, teve o piso de três aposentos completamente danificados. Para além da desimportância de sempre relegada ao passado, o que chama atenção nesse caso é que o Casarão abriga um escritório do Iphan, o instituto que responde pela proteção do patrimônio histórico e cultural no estado da Paraíba.
Erguido pelo escravocrata português Francisco Jorge Torres no despertar do século XIX, o Casarão José Rufino – o lugar leva este nome por conta de seu último proprietário, José Rufino de Almeida, bisneto de Torres, antes do tombamento pelo Iphan, no ano de 2007 – é um dos maiores símbolos do período colonial e da escravidão no estado. O prédio, apresentado como o provável único exemplar de senzala urbana sobrevivente em nosso país, é capaz de revelar, sobretudo pelo viés colonizador, a arquitetura e memória social da escravidão no estado.
O edifício teve usos diversos ao longo dos seus mais de duzentos anos, mas de início serviu de habitação para Jorge Torres e sua família. O local era também um ambiente de comércio (tanto de produtos quanto de pessoas). No casarão de 33 cômodos em que se comercializava desde fumo até tecidos importados, 12 lugares bastante estreitos eram destinados para as pessoas escravizadas que, quando não exerciam o trabalho para Torres, se espremiam enquanto não eram compradas por outros fazendeiros. Foram nessas senzalas que o português realizou por aqui uma espécie de inovação no terrorismo da escravidão; Torres orquestrava uma lógica de utilização dos cômodos para estimular a reprodução de negros.
Sabe-se que uma das senzalas serviam para partos e cuidados referente ao resguardo das mulheres. Já as crianças, logo que adquirissem certa independência de suas mães, seriam levadas para as fazendas ou igualmente comercializadas. O dano irreparável orquestrado por agentes da prefeitura em relação ao solar, ao mesmo tempo em que aciona o olhar público, põe o dedo na ferida: os tijolos originais que compunham o piso das três senzalas foram o palco de uma barbárie desmedida, mas também espremeram desejos, amores, sorrisos e ilusões quase sempre atenuados por uma política de patrimonialização que preserva, sem muito grau de profundidade crítica, a memória daqueles que operaram a barbárie – os retratos dos descendentes de Jorge Torres estão, quase todos, lá, devidamente expostos – em oposição ao apagamento total dos negros e negras que habitaram aqueles cubículos.
Sendo assim, é preciso questionar as práticas e técnicas de preservação de lugares como o Casarão José Rufino. Mais do que revitalizá-lo, resguardá-lo da destruição, é preciso estabelecê-lo e enfatizá-lo, numa perspectiva da educação patrimonial, como símbolo de dominação de um determinado segmento da sociedade sobre outro. Nesse sentido, mais do que uma proposta informativista, adepta das curiosidades etnográficas sobre os habitantes do sobrado, o que necessita ser evidenciado ao passarmos por lá são os olhares e saberes implicados na referida construção, afinal, o sobrado é resultado das relações sociais e dos significados que lhes são atribuídos.
Em nosso país, o início do processo de patrimonialização se dá a partir dos anos 1930 e está associado tanto a independência, quanto às ideias de identidade e soberania nacional. Em outros termos, para representar e construir uma imagem da nação brasileira, práticas preservacionistas começaram a ser implantas. Desse modo, a ideia de patrimônio "nacional" pautou-se, predominantemente, em processos e práticas colonialistas e eurocêntricas na medida em que deixou de fora outras referências culturais não-europeias. Basta lembrarmos das imagens da patrimonialização produzidas e referendadas aqui: para além do Casarão José Rufino, os exemplos mais conhecidos são o Forte de Santa Catarina, o Centro Cultural São Francisco, os engenhos e afins.
Criar outras imagens do patrimônio na Paraíba é um desafio. No que diz respeito ao solar, esta tarefa tem relação direta com o encontro do que quase não pode ser encontrado (os nomes, o formato dos rostos e as histórias entranhadas nos corpos que habitaram o quintal do casarão). O colonialismo é bastante eficaz em invisibilizar os que tornaram possível o enriquecimento de pessoas como Francisco Jorge Torres. Por outro lado, é possível, ainda, imaginar o patrimônio como lugar de lembrança. Lembrar, diga-se de passagem, não é sinônimo de reviver. Um fato deixa de sê-lo no momento mesmo em que termina. Lembrar, ao contrário disso, seria equivalente a reconstruir e repensar o passado.
Logo, se necessitamos preservar monumentos como o Casarão José Rufino, precisamos igualmente de práticas de patrimonialização que não reproduzam o colonialismo e o eurocentrismo, processos que desloquem a imagem do patrimônio dos casarões, engenhos e igrejas, afinal, estes não podem ser os únicos representantes de nossa herança cultural que não é coesa e, portanto, não parte de um único grupo social. Em tempos de depredação e terrorismo fascistas, é urgente debatermos não só a garantia da integridade do patrimônio, mas insistir em outras práticas e técnicas dessa patrimonialização.
Uma luz no fim do túnel que talvez tenha passado despercebida para muitos aconteceu recentemente. Em dezembro de 2021, a Festa de Iemanjá, realizada a 56 anos na capital paraibana, responsável por unir uma infinidade de babalorixás de terreiros diversos, foi declarada patrimônio imaterial do estado a partir de uma lei de autoria da então deputada Estela Bezerra. Na prática, estamos diante da valorização e do reconhecimento, por parte do estado, da fé dos povos tradicionais de matriz africana. Reconhecer que o trabalho de artesãos, terreiros de umbanda, candomblé, quadrilhas e não apenas casarões, engenhos e igrejas guardem os sentidos da palavra patrimônio é extremamente necessário para que possamos romper com bastante força as imagens colonialistas do patrimônio.
texto publicado em
26/01/2023
escrito por ronildo nóbrega,
professor, crítico de arte e artista multimídia