crítica | teatro

Com uma lanterna na mão e um canção-lamúria na boca, um corpo atravessa o pequeno espaço do Teatro Ednaldo do Egypto e dispara estar “à procura de amor”. Um som entremeado, nem masculino, nem feminino, emana daquele corpo e se enrosca a algumas notas da guitarra e outras tantas batidas de alfaia. Iremos descobrir, alguns minutos depois, que se trata de Gisberta, uma mulher trans brasileira que morreu pelas mãos de 14 crianças e adolescentes ao ser amarrada a um tronco e arremessada em um poço na cidade do Porto, em Portugal. O monólogo Gisberta, dirigido por Misael Batista e com atuação de Letícia Rodrigues, abre a temporada de estreias em João Pessoa e busca transportar para o palco uma história real, a da transformista Gilberta Salce, numa tentativa de materializar cenicamente as agruras de uma existência condenada à morte e a solidão.
O cenário do espetáculo é uma cena de crime. Lá estão dispostos todos os materiais que auxiliarão a atriz a criar imagens e narrar o que aconteceu com Sauce, inclusive as crianças, representadas por pequenos bonecos de pano. É desse espaço delimitado, desse poço escuro e frígido, que Letícia Rodrigues, também ela uma mulher trans e por isso mesmo bastante identificada com a história que representa, conta das inúmeras mortes de Gisberta, não só a que acabou definitivamente com a sua existência, digo, a morte enquanto dado factual, biológico, mas todas as outras mortes impostas por uma sociedade transfóbica, incapaz de aceitar a diferença. Um exemplo disso é quando Gisberta nos apresenta seus melhores amigos, Carolina e Leonardo para afirmar, posteriormente, que ambos são cachorros.
O buraco em que a personagem se encontra (que hora é a cena do crime, hora é a rua onde sobrevivia), é um lugar inóspito em que todo o aparato legal é incapaz de agir, não porque não disponha de recursos, mas porque é igualmente incapaz de reconhecer a humanidade do outro que é obrigado a habitá-lo (a causa mortis da transformista brasileira determinada na época foi afogamento). É assim, portanto, a partir de doses de asfixia, que o espetáculo se constrói, se concentrando nas consequências da transfobia e do ódio aos imigrantes (este último aspecto, aliás, apesar de ignorado pela construção dramatúrgica da peça, insiste em aparecer de maneira sutil no decorrer das cenas). O resultado desse mosaico é uma biografia cênica em que a encenação de Misael Batista se organiza como contemplação do sofrimento provocado pelo ódio ao outro.
Logo, em sua ânsia de representar o terror perpetrado aos corpos trans, Gisberta se organiza como um teatro da compaixão e da tentativa de instaurar na plateia, a partir da mimetização da dor de Gisberta Salce, uma empatia em relação à tristeza alheia. Com sentidos e possibilidades de leitura espremidos, a representação da dor e o sofrimento relegam pouquíssimo espaço para imaginarmos as potências daquele corpo. Nesse sentido, o texto de tom seco e direto parece acudir a questão central da encenação. Quase que completamente desprovido de complexidade poética, o elemento textual parece unicamente preocupado em transpor os fatos; o trabalho da brasileira como transformista, a relação com os cachorros (signos da solidão imposta pela transfobia e pela xenofobia) e com uma das crianças que participou do seu assassinato etc.
Um dos pontos interessantes em relação ao elemento dramatúrgico é quando é dada a atriz a oportunidade de improvisar (aqui a obviedade textual é contornada por uma aproximação ao dia a dia). Nesses momentos, Letícia Rodrigues chega a uma interpretação mais próxima do falar que é próprio as relações cotidianas, produzindo pequenos rasgos no texto que desaguam em situações de cumplicidade com a plateia. Ela tira, então, o espectador do lugar de testemunho incapaz, provocado pela teatralização do terror transfóbico sofrido por Gisberta Salce para construir uma situação de empatia em relação a sua própria existência. O respiro, contudo, é momentâneo e o espectador será colocado novamente nesse espaço cultivado pela encenação que irá misturar, posteriormente e sem cuidado, as falas de Gisberta as de Letícia.
O que incomoda em Gisberta, para além de todas as questões de um espetáculo produzido sem dinheiro e sem expectativa de bilheteria, algo tornado comum em terras paraibanas, é o fato dos artistas colocarem o espectador para testemunhar um sofrimento sem, contudo, problematizá-lo, tensioná-lo. Cabe nos perguntarmos, dentro dessa perspectiva, se a capacidade de produção de compaixão e de pena produzidas pelo teatro são capazes de gerir uma empatia para além daquela de natureza momentânea, de interesse dos programas de “inclusão” governamentais, propagandas de publicidade e do mercado em geral. Um teatro “cuir”, mais do que demonstrar o sofrimento enfrentado pelos corpos dissidentes, deve se confundir com uma máquina de guerra capaz de lutar contra o sistema sexual em voga.
texto publicado em
01/02/2023
escrito por ronildo nóbrega,
professor, crítico de arte e artista multimídia