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meu pedaço de chão

Meu Seridó, primeiro espetáculo da Casa de Zoé, produtora idealizada pela atriz Titina Medeiros, experimenta uma abordagem do seridó através dos múltiplos olhares e costumes que o constituem


ronildo nóbrega


Foto: Brunno Martins

“Está no ar a rádio difusora de Caicó, situada em algum lugar entre a realidade, o delírio e a nostalgia”, diz o radialista da Sanhaçu, mudulando a frequência e a recepção de Meu Seridó. Primeira grande investida da Casa de Zoé, produtora natalense idealizada por Titina Medeiros, o espetáculo compõe uma paisagem cênica do seridó que se revela no cruzamento entre a inventividade e os dilemas de sua gente frente ao temperamento climático da região.


É a arenga entre sol e terra pelo amor de chuva que delineia as ações dessa narrativa cruzada, multifacetada. Os ciclos de guerra e paz entre os elementos aparecem para afirmar (e legitimar) uma ideia de circulação conhecida das produções culturais e artísticas que tem o nordeste como tema; a seca. Elemento crucial na conformação deste espaço imaginado, a associação entre “calor colossal” e existência precária é apropriada aqui também como elemento simbólico de elaboração do seridó.


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Quando grupos de teatro se propõem a representar uma região, os gestos e os dizeres dos atores-personagens engendram um discurso sobre o espaço que naturaliza não só as suas fronteiras, mas, sobretudo, a existência de uma identidade local. Quando recortam e enfatizam certas características de uma espacialidade, o que os artistas realizam não é, necessariamente, um espelhamento desta região (como se ela fosse, desde o princípio, dada/aprontada). O resultado desse processo de representação é, portanto, não o diagnóstico, mas a criação.


O teatro, entendido como a arte de inventar e escrever ações no tempo, foi e continua sendo determinante na criação de uma imagem do nordeste (e de suas subregiões). Esta é uma das contribuições do pensamento de Durval Muniz, pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, autor de inúmeros estudos sobre o processo de conformação do imaginário em torno da região nordeste. Esse imaginário que os espetáculos mobilizam acoberta diferenças a partir de maximizações generalistas de certos aspectos tidos como "locais". Como salienta Durval, esses gestos reverberam diferentes interesses econômicos e políticos.


Desse modo, o anseio por afirmar uma “especificidade local” é, em certo sentido, responsável por homogeneizar toda uma multiplicidade, contribuindo com a institucionalização da ideia de nordeste (e, neste caso, de uma de suas subregiões). Diante de um espetáculo como Meu Seridó, as reflexões que Muniz levanta, principalmente em sua tese, acionam a ideia de como a cena artística é responsável por articular e elaborar uma espacialidade e sua história. O seridó composto pela Casa de Zoé é um “sertão idolatrado”, uma “saudade” (afirmações oriundas da boca das personagens).


Logo, o espetáculo em questão não se desvencilha do desejo de confeccionar esse recorte espacial chamado seridó, reproduzindo com maestria aspectos de uma fórmula regionalista. No entanto, mesmo compondo-se a partir desse “lugar de saudade”, a obra é movida por um impulso de construir uma imagem não uniformizada do seridó quando apresenta esta subregião a partir de uma diversidade de planos, personagens e gestos. O seridó da Casa de Zoé constrói essa territorialidade a partir de múltiplas perspectivas, acionando com bom humor vozes marginalizadas e recalcadas pela história oficial.


Entre o particular (o cotidiano das personagens) e o geral (as disputas que conformam a região), Meu Seridó compõe um depoimento alegre e divertido que, se não se desvencilha de uma tradição ansiosa por representar (e fixar) uma região, por outro lado questiona um olhar homogeneiazante dessa espacialidade. Articulada com doses de revisionismo histórico, a obra coloca em cena um regionalismo multifacetado que, ao mesmo tempo em que não se desvencilha de elaborar um território, põe em xeque uma perspectiva única em torno dessa elaboração, conformando uma política da representação do espaço que se constrói nas múltiplas faces e olhares de sua gente.

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