Em Marmota, cantor piauiense se afirma como um corpo político, desassimilado, que produz música e, ao fazê-la, de modo sarcástico e bem humorado, responde a todos aqueles que o odeiam
ronildo nóbrega

Marmota é tão diverso quanto uma playlist gay nordestina. O primeiro álbum de Getúlio Abelha, artista piauiense radicado em Fortaleza, lançado na terça-feira, 8, é uma sopa musical autobiográfica, repleta de referências ao universo musical do mundo e da região. Ouvi-lo é como experimentar, em alguns minutos, uma passagem excêntrica que traz à memória desde os sucessos musicais de Calcinha Preta até o europop de September (cantora sueca que figurou numa das edições da coletânea brasileira de sucesso Summer Eletrohits). O disco de estreia de Getúlio resulta em uma mistura de temas e ritmos sendo, sobretudo, um compêndio escrachado do percurso musical do artista desde os seus primeiros lançamentos oficiais até aqui.
Nesse sentido, há pouco de inédito no disco do cantor (grande parte das músicas eram conhecidas do público). Laricado e Tamanco de fogo figuram como alguns dos rastros mais distantes desse trabalho e reaparecem agora à base de sutis alterações. Essa escolha de reunir tudo sob o título Marmota é responsável por fazer o álbum soar como uma grande retrospectiva de tom confessional, mas é também uma estratégia que, diante das infinitas experimentações do artista ao longo dos últimos anos, produz a sensação de se ouvir um disco que poderia ser facilmente definido, metaforicamente, como uma sopa de aleatoriedades (o que certamente seria irrelevante caso as músicas mantivessem a mesma qualidade).
Contudo, mesmo colocadas lado a lado de faixas como, por exemplo, a morna e destoante Perigo, as suas primeiras canções tampouco perdem algo sua potência subversiva. Marmota, portanto, chega para o público como um retrato preciso da existência do seu autor, das suas transformações e das condições precárias de produção de sua música. Tirando raríssimas exceções – como, por exemplo, Sinal fechado e Tempestade – Marmota compõe, direta e indiretamente, uma imagem debochada da existência queer periférico-nordestina. Cavalo corredor, por exemplo, é um pé de serra dançante que se apropria e reverte o “grande” espetáculo do cabra macho nordestino. Nessa canção, o músico se apropria e reverte o universo sonoro da vaquejada, atividade cultural nordestina marcada pela competição em torno da queda de bois. Ao abdicar da posição e do lugar de fala do vaqueiro (sujeito) e se pronunciar / cantar como cavalo, Getúlio elabora a imagem de uma anarquia relacional, anti-monogâmica e antirromântica; “eu não quero te perder e não quero te prender”. Não se trata, ao contrário do que possa parecer, de decidir amar ou não-amar alguém, mas da invenção de outros modos de relação, isto é, de um relacionar-se sem a mediação de alguns rótulos.
Tendo em mente a retrospectiva apresentada no disco, Tamanco de fogo, uma música que envolve forró eletrônico e altas doses de deboche em relação à "fala em línguas" dos evangélicos brasileiros, não cessa de ser uma resposta irônica e inteligente ao conservadorismo religioso que insiste nas terapias de conversão enquanto que Laricado continua a apontar, na sequência elaborada em Marmota, para uma antropofagia bilateral, deslocada de um único eixo de produção; “você vai me comer, eu vou comer você e a gente vai se devorar”, diz Getúlio em uma de suas produções mais emblemáticas.
O mesmo se dá para Aquenda, outro exemplo do deboche furioso de Getúlio que canta, num tecnobrega bem humorado e dançante, a possibilidade de fluir entre gêneros enquanto rebate uma opinião conservadora, condensada na personagem do pai que diz; "ai, meu Deus, o meu filho de calcinha, como é que eu vou explicar as criancinhas?". Tanto nessa quanto em outras músicas, a resposta é (quase) sempre desconcertante, carregada de força e subversão. Sendo assim, Marmota é uma peça de resistência que não deixa de desfazer e problematizar a heterossexualidade como norma sexual e aponta para a existência de outros modos de existir e habitar o mundo.
A participação icônica e memorável de Getúlio no programa Cidade viva é, ainda, o retrato simbólico mais memorável do lugar que o artista ocupa atualmente no cenário musical brasileiro e nordestino.
Com uma peruca esvoaçada, salto alto e um tomara que caia brilhante e bicolor, Getúlio celebra a sua história enquanto convida um grupo de homens músicos que, apesar de compartilharem o mesmo espaço, não cessam de demonstrar sinais de que recusam o corpo do artista e a diferença que ele materializa, para laricar, isto é, desfazer-se de sua heterossexualidade frágil e cega. Marmota, portanto, é um grande convite a um banquete que serve liberdade em relação a um sistema sexual opressor, reacendendo a ideia de que como a diferença, no campo da música, pode contribuir para problematizar e transformar o mundo. Com este primeiro álbum, portanto, Getúlio se afirma como um corpo político, desassimilado, que produz música e, ao fazê-la, de modo sarcástico e bem humorado, responde a todos aqueles que o odeiam.