Primeiro espetáculo do Teatro das Cabras, A tragédia mais insignificante do mundo coloca em cena a identificação nevrálgica entre uma detetive e a carne caprina
ronildo nóbrega

O que mulheres e cabras têm em comum? Esta é uma das perguntas implícitas que atravessam A tragédia mais insignificante do mundo, o mais recente depoimento feminista da safra de bons espetáculos da cena natalense.
Nesta obra, o grupo traz uma atriz-detetive que, ao investigar um abate caprino nos mínimos detalhes de sua crueldade, começa a identificar-se e a tornar-se ela mesma uma cabra. Como numa investigação criminal que se faz aos poucos a partir da observação e da apuração dos fatos, a dramaturgia do espetáculo se constrói num movimento gradual de clarividência, revelando nesse enredamento uma diluição progressiva dos binômios sujeito/objeto, observador/observado, detetive/cabra e, por último, artista/obra.
Indo de um tom enciclopédico à falas densas, do teatro ao metateatro, A tragédia mais insignificante do mundo constrói uma imagem da opressão que subalterniza (e aniquila!) mulheres e cabras. Num espaço que mais parece um abatedouro, a obra desenrola uma ligação potente entre machismo e especismo (a ideia de que o homem – e não a mulher, diga-se de passagem – é superior a todas as outras espécies).
O espetáculo elabora a ideia de que mulheres e cabras são articuladas por uma tecnologia sofisticada de subalternização que lhes tomam por objetos. É assim que a obra coloca uma correspondência entre a forma como são tratadas as mulheres e a forma como são tratados os animais.
É nesse caminho que, sem que se cresçam chifres, cascos ou pelos, a atriz-detetive entra numa intensa relação dialógica com a condição caprina para reconhecer-se ela mesma animalizada/objetificada. O delírio, entendido como uma tentativa de superação dos limites impostos pela realidade, é a condição desse diálogo pois é ele que ativa as terminações nervosas e efetiva um devir-cabra que berra a autonomia do corpo subalternizado.
Diferente do apático Tratados de mim mesma na infertilidade, espetáculo dirigido por Heloísa Sousa à frente da Sociedade T, a encenadora dá aqui um passo em direção ao público em sua poética das sensações. Excluindo-se pequenos detalhes como, por exemplo, uma televisão que não transmite absolutamente nada à construção dos sentidos do espetáculo, A tragédia mais insignificante do mundo resulta em um pacto caprino interessante e cheio de potencialidades para se pensar a condição da opressão que subalterniza mulheres e cabras.